quarta-feira, 22 de abril de 2015

Doutorar-se

Meus pais, com muita dificuldade, estudaram. Meus avós estudaram menos ainda – sou neta de um ferroviário, um sapateiro, uma balconista de loja de armarinhos e uma costureira. Minha tese foi financiada com dinheiro público, e por isso, sendo brilhante ou insignificante, é um patrimônio intelectual do país construído a custa de uma política pública. Sou a primeira pessoa a me tornar doutora em uma grande e numerosa família, formada em grande parte de imigrantes italianos pobres e desavisados, chegados por aqui no início do século XX e misturados pouco a pouco com toda a diversidade étnica e cultural que o Brasil podia oferecer.

Um título de doutor não melhora nem engrandece ninguém – apenas aumenta a sua responsabilidade em um país em que, infelizmente, ainda poucas pessoas podem efetivamente estudar e se sentir autorizados a construir um discurso sobre o mundo. Eu tive a oportunidade de ir até um grau de estudos que muitos antes de mim não puderam, e o fazer não pode ser apenas uma forma de me tornar mais erudita e culta: tem que potencializar um modo de ver o mundo que deseje estimular a reflexão, o debate e o aprendizado como uma ação humana e cotidiana para além da instituição ‘escola’ ou ‘universidade’.

Às vezes esquecemos, mas teses e dissertações são produtos da ação humana. Não são simplesmente um amontoado de conceitos impressos em um papel que não se relacionam com a vida ao redor. Na verdade nasceram e são potencializados pela vida ao redor – e xs pesquisadorxs que os produziram caminham por aí, levando adiante a possibilidade de que a educação vá fazer algo pela melhoria de nossa qualidade de vida.

A intensa especialização promovida pelos estudos da pós-graduação, nos quais x pesquisadorx se concentra em áreas específicas e estuda às vezes assuntos super individualizados não é algo em si negativo. Mas em alguns casos, pode conduzir a uma cegueira generalizada – ou, como explica o pesquisador francês Edgar Morin, se tornar um tipo de estudo que produz uma proporcional quantidade de ignorância (o que sei é muito específico e o que não sei se torna um vasto e desconhecido universo para fora da minha lente de aumento).

O doutoramento ou o título de Doutor (com D maiúsculo) são condições construídas com autoritarismo em nossa cultura: são fatos associados à ideia de que, uma vez nesse patamar, a pessoa sabe mais do que xs outrxs e por isso não pode ser questionada.  Do Brasil colônia até a República os filhos homens de nobres e grandes fazendeiros (sempre brancos e heteronormativos) iam para a Europa titular-se Doutores ou Bacharéis e, ao retornarem, herdavam os meios de produção econômica e intelectual de um vasto país de “ignorantes”. Ainda chamamos xs médicxs e advogadxs de doutores como consequência desse pensamento autoritário. Em nossa cultura a figura do Doutor ainda é aquela pseudo-autoridade vista de forma maniqueísta: de um lado xs que ainda perpetuam a visão da figura de ser-humano tornado “superior” pela titulação e do outro lado a visão de uma figura inútil “imbecilizada” e afastada do mundo “real” pelo processo acadêmico.

Não perpetuar essa visão maniqueísta é a primeira ação a ser empreendida por quem acredita na educação como via de construção de um mundo mais justo. As políticas públicas que estão sendo disseminadas nos programas de bolsas de pós-graduação dão uma nova cara aos doutorxs e mestres no país. Ainda são majoritariamente brancxs e de uma certa condição econômica, mas, ao mesmo tempo já somos mulheres e homens, espalhadxs por todas as regiões do país. Negros, indígenas, mulheres, homossexuais, pobres, pouco a pouco uma variedade maior de tipos de seres humanos está ganhando a possibilidade de aprender a pensar e construir um discurso sobre si e sobre o mundo ao redor avalizados pela academia. Estamos ganhando novas versões da e para a história, geografia, filosofia, arte, etc. confrontadas por pessoas que cem anos atrás não poderiam se manifestar enquanto seres pensantes e transformadores da sociedade.  Já produzimos nosso próprio conhecimento como latino-americanos e ex-colônias que somos, e isso por si já nos diferencia.

Nesse sentido, a tese é um exercício do pensar que deve necessariamente se estender à vida. É muito fácil falar de melhoria na educação do país e jogar a responsabilidade para a educação de base. Faz-se necessário olhar para o próprio umbigo e perceber que ser umx pós-graduadx em um país no qual uma criança na escola pública se alfabetiza aos doze ou treze anos de idade não é apenas uma possibilidade a mais de aumentar o salário ou fazer aquele concurso bacana e resolver a sua vida financeira. É uma condição que possibilita agir qualificadamente em diversos campos do conhecimento e do trabalho para tentar criar um impacto positivo ao redor. A tese não é um fim do caminho, mas marca apenas o começo – como me foi dito por uma amiga muito querida quando eu estava terminando.


Em última instância, o conteúdo do conhecimento produzido em um trabalho de pós-graduação deve se relacionar intimamente com o modo através do qual ele foi produzido. Porque afinal os conteúdos se desatualizam, nós mudamos nossas opiniões e o mundo vai mudando de forma rápida nesses dias. 

Sendo mais concreta, aprender a estruturar e dar vazão às formas de pensar e viver o mundo é a grande herança que uma tese deixa: o objetivo não é transformar pessoas em enciclopédias humanas, mas talvez humanizar o conhecimento “duro” das teorias de forma que ele se concretize na instância cotidiana da vida de cada um. Aprender a conhecer, aprender a pensar, aprender a disseminar ideias, valores, conceitos, reflexões, práticas e, sobretudo, aprender a olhar x outrx. A tese cria um instrumental para se olhar as pessoas e o mundo de forma humanizada através do conhecimento e não o contrário. Essa seria a concretização do exercício intelectual como ação profundamente humana, falha e incrível como todas as outras ações que temos empreendido desde sempre.