# Sobre as formas existentes hoje
O panorama do incentivo à
produção cultural e artística de Santa Catarina é notadamente falho, tanto por
parte do poder público quanto por parte do setor privado. Não vou entrar nas
demandas que a classe vem reivindicando há mais de vinte anos de luta no campo
das políticas culturais, porque isso seria desfiar uma série de reclamações já
bem conhecidas e que atacam principalmente (e com razão) o Governo Estadual e
os Governos Municipais. Para se ter uma ideia a produção catarinense inteira
conta anualmente com os Editais de Incentivo do Ministério da Cultura/Governo
Federal (para todas as áreas) que dividem um montante bem baixo entre toda a
região sul do Brasil. Depois disso tem praticamente nenhum apoio concreto da
esfera estadual e algumas cidades contam com editais e programas municipais
(como Rio do Sul, Itajaí, Blumenau, Joinville, etc.) e outras operam com
orçamento praticamente nulo (como Florianópolis, por exemplo). Verbas vindas de
leis como a Lei Rouanet não são uma realidade plausível pelo menos no campo do
teatro, que é o que eu circulo mais: moramos em um Estado em que a iniciativa
privada simplesmente não vê sentido em incentivar a cultura, porque vê esse
dinheiro de forma distorcida como uma verba de marketing da empresa e não como
renúncia fiscal que deve ser usada como retorno à sociedade. O empresário
escolhe o projeto não pelo valor artístico, pela qualidade e continuidade do
trabalho da companhia ou do artista, pelo modo como aquilo vai impactar
positivamente uma comunidade ou sua cidade: ele escolhe se tem um nome famoso ou
apelo comercial que vai gerar visibilidade na mídia.
#clichê 1 – propagar um discurso que os artistas e produtores culturais
só produzem com dinheiro público vindo de editais.
Se isso fosse verdade, não
haveria produção artística e cultural em Santa Catarina há muito tempo. As
verbas de editais como o Myriam Muniz, Klauss Vianna, Elisabete Anderle (todos
editais de financiamento direto) são irrisórias em relação ao modo como o setor
se movimenta realmente. Isso porque posso ter um financiamento para montar um
espetáculo teatral, mas todo o meu percurso de formação e pesquisa para que
esse espetáculo tenha qualidade não é pago pelo edital. Todo o trabalho de
manutenção e circulação deste trabalho, a manutenção de ensaios, equipamentos,
profissionais, não é paga pelo edital. É extremamente perverso falar que os
artistas de pequeno e médio porte (que não realizam grandes eventos e produções
ligadas à cultura de massa e mídia) são sustentados por verba pública. Vou dar
um exemplo meu: recebi R$20.000,00 para montar um espetáculo (Récita) em 2014, através do Edital
Elisabete Anderle. Esse dinheiro foi dividido em cerca de sete ou oito
profissionais pagos para desempenhar suas funções, materiais de cenário, equipamentos,
figurinos, material gráfico, etc. Para dar conta eu me divido em diversas
funções: sou atriz, faço produção, assessoria de imprensa, cuido das finanças,
etc. Trabalhamos um ano e meio, ensaiando quase todos os dias para que o
trabalho estreasse: agora faça as contas entre o valor que recebi e o
tempo/montante de trabalho executado. Você acha que isso é ser sustentado
através de editais? Assim como eu, no campo do teatro todos fazem isso.
Dividem-se em mil funções, que nunca são devidamente pagas. Geralmente o que a verba
dos editais faz é viabilizar ações, mostras, espetáculos, turnês que nunca
aconteceriam sem financiamento de uma fonte maior. Mas o trabalho de pesquisa,
manutenção e continuidade de percursos de vinte, quinze anos de trabalho
artístico é completamente bancado pelos grupos e artistas que se viram dando
aulas, trabalhando em diversos projetos ao mesmo tempo, fazendo bicos e
quebrando a cabeça para ver como sobreviver apenas de teatro em Santa
Catarina. Ou seja, tod@s que fazem
realmente um trabalho sério e constroem trajetórias sólidas sobrevivem sem
dinheiro de Editais, porque a cultura é feita de pessoas, pessoas estas que
precisam sobreviver mês a mês. Esta afirmação abre precedente para buscar um
entendimento maior da responsabilidade do Estado e da comunidade em torno para
a sustentação da cultura e da arte em um lugar.
#clichê 2 – a verba para a cultura/arte é supérflua, em um momento de
crise o governo tem que investir em saúde e educação.
Esta é uma frase que tenho ouvido
bastante, inclusive em lugares oficiais, como a Câmara dos Vereadores de
Florianópolis. O que não passa pela cabeça da maioria das pessoas que propaga
este clichê é que a verba da cultura, tanto no âmbito estadual quanto em alguns
municípios de Santa Catarina já não é paga/utilizada integralmente há décadas.
Existe sim dinheiro para executar muitos projetos e iniciativas, mas ele vai se
perdendo em um escoadouro que mistura má administração, corrupção e uma
mentalidade tacanha. A verba da cultura já não serve à cultura há muito tempo,
por mais que a classe se empenhe em engendrar denúncias manifestos, ações.
Frases como essa só evidenciam uma Santa Catarina que possui uma mentalidade de
que cultura e arte são “produtos” supérfluos. Vivemos em um lugar em que
visitar um museu no sábado não é um programa de família, que freqüentar
atividades na casa de cultura de sua cidade é uma realidade distante do
cotidiano das pessoas. Ir a um show de música, ver uma peça de teatro são gastos
insensatos em tempos de crise: não pago $20 reais para ver um espetáculo, mas
pago o mesmo valor por um sanduíche qualquer na esquina. Estamos imersos em uma
cultura do entretenimento, que tenta desmontar a lógica da necessidade de
financiamento público para a cultura e a arte, usando um argumento perverso: de
que cultura e arte sendo supérfluas podem ir para o final de uma fila de
“prioridades”. Agora faça um exercício: imagine seus dias sem música, sem
fotografia, sem filmes, sem atores e atrizes, sem desenhos e pintura, sem
livros... a vida seria a mesma? Tudo isso lhe parece supérfluo? Então lembre-se
que tudo isso é feito por pessoas, que trabalham para que isso exista.
#cenário 1 – arte e cultura sustentadas apenas por uma mentalidade de
mercado.
Se o seu trabalho é tão bom, ele
deveria se sustentar economicamente. Correto? Não. Quando falamos de cultura e
arte, entramos em um campo que deve prescindir de um valor mercadológico para
sua sobrevivência. Se isso valesse mesmo, toda a produção artística e cultural
da atualidade se alinharia com o “gosto” do consumidor médio: no teatro só
faríamos comédias porque as pessoas só pagam para dar risada. Na música só se
faria cover, porque só pagam para
ouvir músicas já consagradas pela mídia. Nas artes visuais só haveria
reprodução de telas famosas para ornar paredes de hotel. A produção artística é
uma produção simbólica, que reflete um pensamento complexo sobre o tempo em que
vivemos, que expressa esteticamente anseios, visões, ideais muitas vezes
antagônicos com as tendências de “mercado”. Tem que ser transgressora, tem que
ser provocativa, tem que dialogar com as pessoas de seu lugar e seu tempo. Ainda
que de forma questionável, o financiamento através de editais públicos concede
uma liberdade artística e de expressão aos artistas e produtores culturais
muito importante: posso escolher temas, concepções de mundo, colocar dedo em
feridas abertas, expor problemas, criar polêmicas. Bem ou mal, o financiamento
do Estado aos projetos culturais faz com que uma diversidade salutar de vozes e
pensamentos seja mantida, enquanto as regras do mercado homogeneízam tudo em
prol de sua vendabilidade. Reduzir a questão da sobrevivência das iniciativas
artísticas e culturais de um lugar ao argumento do mercado é estúpido. O mercado
vai sustentar só o que dá dinheiro, e arte não é um bem consumível. É um bem vivível, conceito um pouco fora de moda
no mundo em que vivemos hoje que se baseia em ter/consumir e não em vivenciar/ser.
#os editais e suas complexidades
Os editais marcaram uma
importante conquista em Santa Catarina: o fim da política de balcão, aquela
velha prática de ficar anos tomando cafezinho em algum órgão do Estado e
negociando valores e projetos pela camaradagem entre “amig@s”. Os editais
significam uma concorrência pública, que dá chance a muitas pessoas de terem
projetos financiados que possuem mérito e excelência. Cria diversidade e
aumenta a oferta de atividades para o público em geral. Claro que há os dois
lados da moeda: preencher uma papelada de projeto, fazer a burocracia
necessária, escrever textos, orçamentos e cronogramas bem fundamentados é um
trabalho complexo. Imagine a associação dos artesãos de uma comunidade indígena
preenchendo uma justificativa em 330 caracteres de porque seu trabalho é
importante? É claro que eu, tendo um doutorado, farei um texto bem melhor, e
tenho mais chance de levar a verba. Então a lógica dos editais ainda é
excludente: é prioritariamente branca, letrada, de uma classe social que tem
acesso a internet e computadores. Ou seja, mesmo que garanta mais diversidade,
ainda não dá conta da realidade do Brasil. O edital engessa também as formas de
arte, as categorias. E transforma noss@s colegas de profissão em concorrentes:
se eu ganho significa que alguém não ganhou. Mas isso só ocorre porque o
investimento é tão miserável que tod@s ficam se engalfinhando por uma verba
irrisória, quando na verdade se o dinheiro fosse investido integralmente teria
espaço, verba e sustentabilidade para tod@s.
#pessoalmente falando
O último edital que eu ganhei
como artista, em um projeto pessoal, foi em 2014. Trabalhei e trabalho
continuamente em projetos que foram contemplados em outros prêmios e formas de
incentivo, sempre como colaboradora de outros núcleos e companhias. Mas a
manutenção dos meus espetáculos que estão em repertório nas viagens dos últimos
dois anos, a execução de meus projetos de pesquisa artística como a residência Solidão Compartilhada (com a atriz
Monica Siedler), a montagem do novo espetáculo, a manutenção de projetos
importantes como o Vértice Brasil
(com as Marisa Naspolini, Glaucia Grigolo e Monica Siedler), tudo isso é feito
diariamente e sem verba pública ou de edital. Criar uma rede de apoio entre
companhias, coletivos e artistas é uma forma de sobreviver, pois estamos
continuamente circulando e nos ajudando mutuamente. Quando um núcleo ganha um
projeto, envolve toda uma cadeia produtiva ao redor. E se você como artista
paralisa a sua produção, esperando para retomar quando o próximo edital sair,
seu trabalho morre. Recentemente li uma frase de um diretor russo chamado
Meierhold, em que ele diz que para se fazer o teatro que acredita, você tem que
pagar do seu bolso. Isso valia em 1920 e vale ainda hoje. É perverso, poderia
ser melhor, estamos lutando para que seja; mas para essa virada ocorrer
teríamos que viver uma mudança profunda de padrões de pensamento e ação que
estão no nível humano. Rever escolhas, conceito de felicidade, de bem estar, de
saúde. O governo, as cidades, são feitas de pessoas. As pessoas teriam que
sentir necessidade de assistir teatro, de pensar o mundo, de sair da frente da
televisão e ver o que está acontecendo ao seu redor: daí sim talvez as coisas
mudassem no campo da produção cultural no contexto em que estou inserida.
#instituições,
institutos, fundações ausentes
Outro fator que é bem
característico do cenário cultural e artístico de Santa Catarina é a completa
ausência de institutos de artes, fundações, bibliotecas ou espaços culturais.
Não estou falando dos prédios físicos (esses existem) e nem de lugares que
ficam abertos de segunda a sexta com um funcionário só para abrir e fechar a
porta do lugar. O fato é que não há um desenvolvimento de espaços realmente
qualificados de cultura, que tenham curadoria, programação, pessoas trabalhando
24h para lançar programas, residências, diálogos entre comunidade e artistas. A
arte não é vista como uma profissão ainda em nosso Estado, mais um sinal de uma
comunidade super retrógrada. Em 99% dos casos somos nós artistas que movemos
isso, geralmente financiados pelos Editais. Tem o SESC Santa Catarina, que está
ali como uma tábua de salvação no meio do nada, mas tem infinitamente menos
recursos que outros Estados do Brasil e com certeza não consegue atender a
tod@s. Tais locais (que seriam, por exemplo, um Centro Cultural São Paulo, os
CCBBs, etc.), dão chancela aos artistas, mediam o contato do público com a arte
e ajudam os dois lados. Não é só abrir as portas de um lugar, colocar um cartaz
na porta e pronto: existe um trabalho por trás, realmente sério, que não é
feito. Para se ter uma ideia, falando de Florianópolis, existem poucos espaços
que possuem uma estrutura que se dedica a pensar a estrutura intelectual e
logística desses locais. A Fundação Badesc ou o Museu Victor Meirelles são
exemplos positivos em Florianópolis, porém operam com tão pouca verba que não
conseguem mover muito. Mas os espaços públicos da prefeitura ou do Estado, por
exemplo, desanimam até os mais teimosos: não “podem” abrir finais de semana
porque o vigia não está, desmarcam seu evento em cima da hora por motivos
banais, tratam os artistas e o público como aquelas figuras que vão perturbar a
ordem do local e gerar mais trabalho, em uma completa inversão de valores do
que seriam espaços dedicados à arte e cultura. Só para se ter ideia, ano
passado em uma apresentação do meu espetáculo “A Menina Boba” em um espaço da
prefeitura, três horas antes de começar as funcionárias pediram para eu
cancelar porque o dedetizador apareceu de surpresa, e iam dedetizar o prédio.
Eu bati o pé e disse que não cancelaria, que era um absurdo: resolveram a
situação do dedetizador mas @s outr@s funcionári@s do mesmo prédio ficaram
bravos porque não poderiam ir para casa mais cedo por causa de uma apresentação
teatral qualquer. Situações como estas praticamente expulsam qualquer artista
sã@ de permanecer em Florianópolis produzindo. Tod@s as pessoas ao meu redor
que trabalham com arte já passaram por situações semelhantes ou piores, e é
importante mostrar ao público que só existe a programação generosa que
Florianópolis (e outras cidades do Estado) tem oferecido nos últimos anos
porque somos bem insistentes, pois o cenário é completamente desfavorável.