Meus pais, com muita dificuldade, estudaram.
Meus avós estudaram menos ainda – sou neta de um ferroviário, um sapateiro, uma
balconista de loja de armarinhos e uma costureira. Minha tese foi financiada
com dinheiro público, e por isso, sendo brilhante ou insignificante, é um
patrimônio intelectual do país construído a custa de uma política pública. Sou
a primeira pessoa a me tornar doutora em uma grande e numerosa família, formada
em grande parte de imigrantes italianos pobres e desavisados, chegados por aqui
no início do século XX e misturados pouco a pouco com toda a diversidade étnica
e cultural que o Brasil podia oferecer.
Um título de doutor não melhora nem
engrandece ninguém – apenas aumenta a sua responsabilidade em um país em que,
infelizmente, ainda poucas pessoas podem efetivamente estudar e se sentir
autorizados a construir um discurso sobre o mundo. Eu tive a oportunidade de ir
até um grau de estudos que muitos antes de mim não puderam, e o fazer não pode
ser apenas uma forma de me tornar mais erudita e culta: tem que potencializar
um modo de ver o mundo que deseje estimular a reflexão, o debate e o
aprendizado como uma ação humana e cotidiana para além da instituição ‘escola’
ou ‘universidade’.
Às vezes esquecemos, mas teses e dissertações
são produtos da ação humana. Não são simplesmente um amontoado de conceitos
impressos em um papel que não se relacionam com a vida ao redor. Na verdade
nasceram e são potencializados pela vida ao redor – e xs pesquisadorxs que os
produziram caminham por aí, levando adiante a possibilidade de que a educação
vá fazer algo pela melhoria de nossa qualidade de vida.
A intensa especialização promovida pelos
estudos da pós-graduação, nos quais x pesquisadorx se concentra em áreas
específicas e estuda às vezes assuntos super individualizados não é algo em si
negativo. Mas em alguns casos, pode conduzir a uma cegueira generalizada – ou,
como explica o pesquisador francês Edgar Morin, se tornar um tipo de estudo que
produz uma proporcional quantidade de ignorância (o que sei é muito específico
e o que não sei se torna um vasto e desconhecido universo para fora da minha
lente de aumento).
O doutoramento ou o título de Doutor (com D
maiúsculo) são condições construídas com autoritarismo em nossa cultura: são fatos
associados à ideia de que, uma vez nesse patamar, a pessoa sabe mais do que xs
outrxs e por isso não pode ser questionada. Do Brasil colônia até a República os filhos homens de nobres e grandes fazendeiros (sempre brancos e
heteronormativos) iam para a Europa titular-se Doutores ou Bacharéis e, ao
retornarem, herdavam os meios de produção econômica e intelectual de um vasto
país de “ignorantes”. Ainda chamamos xs médicxs e advogadxs de doutores como
consequência desse pensamento autoritário. Em nossa cultura a figura do Doutor
ainda é aquela pseudo-autoridade vista de forma maniqueísta: de um lado xs que
ainda perpetuam a visão da figura de ser-humano tornado “superior” pela
titulação e do outro lado a visão de uma figura inútil “imbecilizada” e
afastada do mundo “real” pelo processo acadêmico.
Não perpetuar essa visão maniqueísta é a
primeira ação a ser empreendida por quem acredita na educação como via de
construção de um mundo mais justo. As políticas públicas que estão sendo
disseminadas nos programas de bolsas de pós-graduação dão uma nova cara aos
doutorxs e mestres no país. Ainda são majoritariamente brancxs e de uma certa
condição econômica, mas, ao mesmo tempo já somos mulheres e homens, espalhadxs
por todas as regiões do país. Negros, indígenas, mulheres, homossexuais, pobres,
pouco a pouco uma variedade maior de tipos de seres humanos está ganhando a
possibilidade de aprender a pensar e construir um discurso sobre si e sobre o
mundo ao redor avalizados pela academia. Estamos ganhando novas versões da e para a história,
geografia, filosofia, arte, etc. confrontadas por pessoas que cem anos atrás não
poderiam se manifestar enquanto seres pensantes e transformadores da sociedade.
Já produzimos nosso próprio conhecimento
como latino-americanos e ex-colônias que somos, e isso por si já nos
diferencia.
Nesse sentido, a tese é um exercício do
pensar que deve necessariamente se estender à vida. É muito fácil falar de
melhoria na educação do país e jogar a responsabilidade para a educação de
base. Faz-se necessário olhar para o próprio umbigo e perceber que ser umx
pós-graduadx em um país no qual uma criança na escola pública se alfabetiza aos doze ou treze
anos de idade não é apenas uma possibilidade a mais de aumentar o salário ou
fazer aquele concurso bacana e resolver a sua vida financeira. É uma condição
que possibilita agir qualificadamente em diversos campos do conhecimento e do
trabalho para tentar criar um impacto positivo ao redor. A tese não é um fim do
caminho, mas marca apenas o começo – como me foi dito por uma amiga muito
querida quando eu estava terminando.
Em última instância, o conteúdo do
conhecimento produzido em um trabalho de pós-graduação deve se relacionar
intimamente com o modo através do qual ele foi produzido. Porque afinal os
conteúdos se desatualizam, nós mudamos nossas opiniões e o mundo vai mudando de
forma rápida nesses dias.
Sendo mais concreta, aprender a estruturar e dar
vazão às formas de pensar e viver o mundo é a grande herança que uma tese deixa:
o objetivo não é transformar pessoas em enciclopédias humanas, mas talvez
humanizar o conhecimento “duro” das teorias de forma que ele se concretize na
instância cotidiana da vida de cada um. Aprender a conhecer, aprender a
pensar, aprender a disseminar ideias, valores, conceitos, reflexões, práticas
e, sobretudo, aprender a olhar x outrx.
A tese cria um instrumental para se olhar as pessoas e o mundo de forma
humanizada através do conhecimento e não o contrário. Essa seria a
concretização do exercício intelectual como ação profundamente humana, falha e
incrível como todas as outras ações que temos empreendido desde sempre.